Recentemente um vídeo ficou muito popular na internet, sendo compartilhado em diversas mídias sociais como Facebook, Linked-in e outros.
Nesse vídeo, temos um cuteleiro que exibe uma faca recém fabricada. Na demostração de uso da faca, ele com a ajuda de um martelo consegue cortar ao meio uma barra metálica e na sequência usa a mesma faca para cortar um jornal, mostrando que a faca ainda estava intacta e com sua afiação em perfeitas condições.
O título do vídeo sugere que a dureza e a resistência da faca se deve ao aço A36 temperado com Nióbio. E credita-se a ele uma série de benefícios do seu uso.
Para os leigos e entusiasta do Nióbio, tal afirmação pode parecer fantástica e espetacular e, ingenuamente, saem compartilhando a informação como verdade absoluta, exaltando o grande feito do cuteleiro, no entanto, para nós da área de engenharia a informação é mais falsa do que nota de 3 reais.
Em relação ao cuteleiro, podemos afirmar que trata-se de um excelente profissional, que domina muito bem os processos de forjamento e tratamento térmico, no entanto, não existe nenhum feito extraordinário, somente uma perfeita execução de um ofício.
O que queremos dizer é que a afirmação do Aço A36 brasileiro temperado com nióbio pode enganar aos desavisados, mas com um pouco de conhecimento técnico em processos de fabricação, tratamento técnico e materiais, podemos afirmar que não passa de balela, e das grandes, e passaremos a explicar o motivo de nossa afirmação.
A primeira informação falsa do título do vídeo é que o aço A36 é brasileiro. Na verdade trata-se de um aço usado internacionalmente, principalmente, nos Estados Unidos. Nesses assuntos, o que determina o nome do aço é a norma técnica que foi utilizada para a sua fabricação, no caso em questão, trata de uma norma da ASTM (American Society for Testing and Materials), hoje conhecida como ASTM Internacional.
Siderúrgicas brasileiras usam frequentemente a norma da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) para a fabricação dos mais variados tipos de aço.
Mas antes de falarmos do aço A36, vamos falar do aço propriamente.
Basicamente, os aços são materiais cuja a formação básica é de Ferro e Carbono, dependendo da porcentagem de carbono, vamos tendo tipos diferente de aço. Por exemplo, os aços 1010 e 1020 da ABNT possuem respectivamente, 0,1 e 0,2% de carbono em sua composição. Se a liga tiver até 2,3% de carbono é considerado aço, a partir daí recebe o nome de ferro fundido.
Também teremos outro tipo de aço em função dos outros elementos de liga utilizados na sua composição. Por exemplo, o aço inox possui em sua composição, além do ferro e carbono, níquel e cromo. Dependendo da porcentagem teremos o inox 304, 316, 316L, entre outros. Existe uma infinidade de elementos de liga que podem ser utilizados, conferindo diferentes propriedades mecânicas e físico-químicas produto final.
O Aço A36 da ASTM é semelhante ao aço 1020 da ABNT. Trata-se de um aço estrutural, cuja estrutura possui em sua composição por volta de 0,25% de carbono.
Outro ponto importante para avaliar a informação do vídeo está no processo de tratamento térmico que recebe o nome de têmpera.
Para compreender o processo de têmpera, primeiro temos que entender a forma com o aço é estruturado do ponto de vista microscópico.
As moléculas de ferro e carbono estão dispostas no formato cúbico. Em temperaturas mais baixa ele se encontra no formato cúbico de corpo centrado (CCC) ilustrado em azul na figura abaixo.
Quando o aço é aquecido, a partir de um certo patamar de temperatura, que acontece acima dos 700 graus Célsius ele muda o seu formado para cúbico de face centrada (CFC), ilustrado em verde na figura abaixo.
Mas o que isso tem a ver com a presente discussão? Tudo.
Quando o aço assume o formato CFC ou fase gama, a sua densidade sobe tendo em vista que mais moléculas de carbono ocupam o espaço cúbico imaginário. Esse aumento de densidade pode ser observado comparando as figuras azul e verde inferiores, no esquema acima.
É aqui que entra o processo de têmpera.
O processo de Têmpera consiste em aquecer o material e resfriá-lo rapidamente, mergulhando a peça em óleo, salmoura, água ou outro meio especial.
Quando a peça é resfriada rapidamente, parte do carbono que havia migrado para o cubo imaginário não consegue retornar para a condição inicial, assumindo uma outra forma, chamada de martensita.
Martensita é um composto a base de carbono, assim como o grafite ou o diamante, só está numa configuração diferente. Dependendo do aço, outras estruturas também podem surgir, como por exemplo, a bainita e perlita.
O que acabamos de dizer é que o processo de têmpera depende apenas de um aquecimento e resfriamento da peça e nada tem a ver com qualquer tipo de componente, incluindo o nióbio, em outras palavras, não existe um tratamento térmico de têmpera com nióbio.
Outro ponto fundamental no que acabamos de dizer é o fato do carbono que fica aprisionado na forma de martensita durante o resfriamento. Isso só é possível se houver carbono disponível o suficiente para isso, ou seja, o aço para ser temperável deve ter uma porcentagem mínima de carbono, essa porcentagem é por volta de 0,40%.
Lembrando que o aço A36 tem apenas 0,25% de carbono, ele não é um bom candidato para ser temperado.
Até aqui já mostramos que a afirmação do título do vídeo é absurda por três aspectos, primeiro pelo fato do aço A36 não ser brasileiro, segundo por conta do tratamento térmico de têmpera depender apenas do aquecimento e resfriamento da peça a ser temperada e por fim, pelo fato do aço A36 não ser um bom candidato à têmpera.
O que falta analisar é a possibilidade de termos um aço com nióbio.
Dentro os processos existentes atualmente, existem algumas possibilidade de termos nióbio na composição.
O primeiro modo é na fabricação original do aço, ou seja, a adição de nióbio como elemento de liga. Nesse caso, nós teremos outro tipo de aço e não o aço A36.
Uma outra maneira possível é o ferreiro triturar o aço, adicionar nióbio, fundir tudo e forjar a faca, nesse caso, também não poderá ser considerado mais o aço A36.
Outro ponto importante é que nióbio não é um material barato e de fácil acesso para cidadãos normais, como cada um de nós. Sendo assim, imaginar que o cuteleiro teve acesso a nióbio para fazer o que acabamos de dizer também não é razoável.
Com base em todos os aspectos técnicos analisado, reafirmamos o que dissemos no início: "Faca feita com aço A36 temperada com nióbio é tão falso como nota de 3 reais."
Se quiser ser avisado quando enviarmos novos artigos, então:
Também fizemos um vídeo como essa discussão, que você pode assistir logo abaixo:
Fontes:
Livro Tratamento Térmicos das Ligas Ferrosas de Vicente Chiaverini - Editora ABM
Fotos: Internet
Escrito por: Micelli Camargo
Engenheiro Mecânico pela Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI desde 2005
MBA Executivo em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas – FGV em 2016
Especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Uniderp em 2010
Engenheiro de vendas e aplicações com mais de 14 anos de experiência em vendas técnicas, sendo os últimos 07 anos na pela John Crane, multinacional do seguimento de Vedações Industriais, além de atuar como professor e produtor de vídeo-aulas, artigos e cursos relacionados à engenharia em Cursos Engenharia e Cia.
Atualmente coordenador da divisão técnica de Manutenção do Instituto de Engenharia.
Eu acredito
Ótima explicação sobre o assunto.
Parabéns à todos que participaram desta publicação.